No último domingo (15), o jornal Diário do Pará publicou entrevista com um ginecologista e obstetra com “30 anos de formado”, que critica o parto humanizado e o trabalho de doulas. Nós, do MOVIMENTO DE HUMANIZAÇÃO DO PARTO E DO NASCIMENTO, composto por mulheres, homens, gestantes, mães, companheiros, pais, doulas, enfermeiras/os obstetras, e médicas/os; e apoiadoras e apoiadores da causa; viemos por meio desta fazer notar que o jornal entrevistou um médico que desconhece o trabalho das doulas e o que seria a humanização do nascimento, divulgando conceitos errôneos e fantasiosos acerca do tema. Com o intuito de contribuir para a informação da sociedade, escrevemos o texto abaixo, explicando e fornecendo fontes sobre o que consideramos ser o trabalho das doulas e a assistência humanizada ao parto no Brasil.
Tendo em vista a correta informação das leitoras e dos leitores do Diário do Pará, precisamos desfazer inicialmente os dois maiores erros cometidos pelo médico:
1.Doulas não fazem partos.
Nem médicos.
Quem faz o parto é a mulher.
A palavra tem origem no grego e significa “mulher que serve”. Conforme consta no documento "Parto, Aborto e Puerpério - Assistência Humanizada da Mulher" elaborado pelo Ministério da Saúde, a doula é uma prestadora de serviços que recebeu um treinamento básico sobre parto e esta familiarizada com uma ampla variedade de assistência. Ela fornece apoio emocional, com elogios, reafirmação, medidas para aumentar o conforto materno, contato físico (tais como massagens para alívio da dor), explicações sobre o que está acontecendo durante o trabalho de parto e uma presença constante e empática à parturiente. Tudo para ajudar aquela mulher a ter uma experiência positiva de pré-parto, parto, e pós-parto.
Médicos obstetras não deveriam "fazer o parto". Deveriam assistir ao parto, com o mínimo de intervenções, observar e avaliar o percurso fisiológico do nascimento e intervir apenas quando fosse realmente necessário. É o que apontam os estudos mais recentes e atuais. É o que indica o Guia de Boas Práticas de Atenção ao Parto e ao Nascimento, formulado pela Organização Mundial da Saúde, no ano de 1996..
Sabemos que na atual realidade brasileira, perpetuada e reforçada pela formação nas universidades e na prática cotidiana em hospitais e maternidades, os/as profissionais da obstetrícia, em sua grande maioria, continuam tratando a gestante/puérpera como um objeto, infantilizando-a e subjugando-a das mais diferentes formas. Esta afirmação pode ser constatada nos números assustadores de violência obstétrica em nosso país: 1 em cada 4 mulheres sofre algum tipo de violência física ou psicológica em algum dos estágios do parto (pré-,parto, pós-), como afirma pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo/SESC (2011). Nós, do MOVIMENTO DE HUMANIZAÇÃO DO PARTO E DO NASCIMENTO, acreditamos que este número seja ainda maior. Pois a violência obstétrica é tão naturalizada em nosso país, que é comum escutar que xingamentos e intervenções obsoletas (como kristeller - o empurrão na barriga; e a episiotomia - o corte entre o ânus e a vagina) fazem parte do parto normal. Vale ressaltar que mulheres negras e pobres estão ainda mais suscetíveis a serem vítimas deste tipo de violação.
O fato do Brasil ser o campeão mundial de cirurgias cesarianas também corrobora com o tratamento que nós mulheres recebemos durante o período gestacional e no ato do nascimento de nossos filhos. Segundo a pesquisa Nascer no Brasil, a maior pesquisa realizada sobre parto e nascimento no País, coordenada pela Fiocruz, publicada em 2014, 66% das mulheres preferiram o parto normal no inicio da gravidez. Mas, das 23.894 entrevistadas, 52% tiveram seus filhos por meio de uma cirurgia cesariana. Analisando apenas o setor privado, este número sobre para 88%. A OMS estima que apenas 15% das mulheres teriam a real necessidade de serem submetidas a uma cesárea no final da gravidez.
Desaprendemos a parir ou estamos sendo muito mal assistidas?
2. Parto Humanizado
Não é um “tipo de parto”, como afirmou erroneamente o médico entrevistado pelo jornal. Parto humanizado é um tipo de assistência. Não é um protocolo, não é um método, não se trata de ter uma banheira, uma bola, um quarto bonito, ou cheio de aparatos tecnológicos.
Humanizar o parto quer dizer respeitar o protagonismo para a mulher. Ela toma as decisões informadas e embasadas - sobretudo no Guia de boas práticas da OMS - acerca de seu parto, assim como decide os procedimentos a serem adotados, posições e local onde deseja parir - seja no hospital, em casa, de cócoras, na piscina, na banqueta. As decisões são sempre embasadas em evidências e sob a supervisão de uma equipe que entenda que o parto é um evento fisiológico, natural, salvo algumas necessidades de intervenções.
Nos deparamos com comerciais de maternidades humanizadas, como se a humanização estivesse relacionada com as megas infraestruturas. De nada adiante ter tudo isso se os profissionais são totalmente intervencionistas, realizando procedimentos de rotinas sem ao menos apresentar indicação, como é o caso do soro com ocitocina, o corte no períneo, manobra de kristeller. Também devemos mencionar aqui os comentários pejorativos que a maioria das gestantes são obrigadas a ouvir durante o trabalho de parto.
Novamente citamos a Nascer no Brasil, apenas 5% das mulheres entrevistadas pela pesquisa não sofreram as intervenções citadas acima! Um profissional que trabalha dentro das boas práticas, ou seja, um profissional humanizado, não procede dessa forma. Antes de tudo acredita na capacidade da mulher em dar a luz, prioriza o respeito às decisões da parturiente e, caso necessário, informa o procedimento antes de praticá-lo.
Dito isto, passemos aos pontos da entrevista:
“A saúde materno-infantil vem sendo cada vez mais perseguida através dos chamados partos humanizados que geram vários benefícios para mães e bebês, mas também trazem riscos sérios caso não sejam muito bem planejados e executados.”
Segundo o site da FEBRASGO (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia), o parto humanizado visa acima de tudo o bem estar da mãe e do bebê, inclusive, reforçando que o parto humanizado deve ser um direito de todas as mulheres.
No mesmo artigo, se reforça que o parto humanizado não é “um tipo de parto”, mas sim um processo, onde se respeita o protagonismo da mulher. Segundo o Manual “parto aborto e puerpério: assistência humanizada à mulher”, do Ministério da Saúde, Febrasgo e Abenfo, de 2001, o conceito de atenção humanizada é amplo e envolve um conjunto de conhecimentos, práticas e atitudes que visam a promoção do parto e do nascimento saudáveis e a prevenção da morbimortalidade materna e perinatal. Inicia-se no pré-natal e procura garantir que a equipe de saúde realize procedimentos comprovadamente benéficos para a mulher e o bebê, que evite as intervenções desnecessárias e que preserve sua privacidade e autonomia
“Esse tipo de parto (humanizado) é a integração do trabalho de parto, com a participação do acompanhante da paciente, geralmente o esposo ou uma pessoa muito próxima da parturiente, que possa dar mais segurança à paciente no desenrolar do trabalho de parto”
Não. Isso não é parto humanizado. Ter um acompanhante de escolha da mulher durante o trabalho de parto, parto e pós parto imediato é um direito garantido por lei (11.108/2005) há 10 anos! Mesmo tendo tanto tempo, a lei continua sendo, diariamente, desobedecida por hospitais e profissionais de saúde. Prova disso é que, em março de 2014, o Ministério Público Federal ajuizou ação civil pública na Justiça Federal em Belém contra a União, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e contra cinco hospitais que, ao atenderem partos na capital paraense, não cumprem a chamada lei do acompanhante. A lei nº 8.080/90, alterada pela lei nº 11.108/2005, garante a toda gestante a presença de um acompanhante nos momentos de pré-parto, parto e pós-parto, sendo esse acompanhante de sua livre escolha e independente de qualquer pagamento adicional - negar este direito constitui violência obstétrica. As denúncias acerca do descumprimento da Lei do Acompanhante foram encaminhadas ao Ministério Público Federal em 2010, como parte de uma programação nacional da Parto do Princípio - Mulheres em Rede pela Maternidade Ativa.
A presença de alguém conhecido e de seu convívio traz mais segurança à parturiente e também funciona como inibidor de violência obstétrica e más práticas.
“A cesariana deve ser aplicada em casos de complicações no trabalho de parto e que ponham em risco a vida da mãe e do bebê. São as chamadas cesarianas seletivas, que são agendadas e onde há impossibilidade do parto normal por vários motivos, como fetos atravessados, placentas prévias, entre outros”
As cesarianas eletivas, são aquelas agendadas previamente e não aquelas realizadas a partir de complicações no trabalho de parto. Existem na verdade pouquíssimas indicações clínicas para cesarianas eletivas, como bem citado no texto, a placenta prévia completa. Porém, o que se sabe é que o abuso da marcação de cesarianas eletivas por motivos estapafúrdios como “cordão enrolado no pescoço”, “falta de passagem”, “bebês que não encaixaram antes do trabalho de parto” são a nossa realidade no Brasil. Podemos observar este abuso nos números do inquérito nacional sobre parto e nascimento “Nascer no Brasil” de 2014, que apontam que 34% das mulheres entrevistadas tiveram seus filhos por cesarianas realizadas ELETIVAS.
‘Estima-se que no país, quase um milhão de mulheres, todos os anos, são submetidas a cesariana sem indicação obstétrica adequada, perdem a oportunidade de ser protagonistas do nascimento de seus filhos, são expostas com eles a maiores riscos de morbidade e mortalidade e aumentam desnecessariamente os recursos gastos com saúde. Estudos recentes mostram também as consequências e repercussões da via de nascimento no curso natural do desenvolvimento intrauterino e sobre a saúde futura das crianças, incluindo o risco aumentado de obesidade, diabetes, asma, alergias e outras doenças não transmissíveis. - Sumário Executivo Temático da Pesquisa Nascer no Brasil, página 3.
“Para mim como médico, o parto humanizado é, acima de tudo, o parto seguro, com acompanhamento pré-natal e que garanta a integridade de mãe e bebê, realizado numa sala de parto toda equipada e com equipe capacitada e preparada para o procedimento.”
Este não é o conceito de parto humanizado para o Ministério da Saúde, por exemplo. Não se trata do local de parto. Inclusive, existem estudos sérios que demonstram a segurança dos partos domiciliares planejados ou em casas de parto para gestações de baixo risco. Como o nome diz, os partos domiciliares que são planejados contam com material para atendimento de urgências e suporte para transferências. Inclusive, existe uma boa quantidade de artigos que apontam as vantagens do parto extra-hospitalar, para gestações de risco habitual, dentro das condições de segurança citadas. Dra. Melania Amorim, médica obstetra PHD pela OMS em Genebra, escreveu revisões e artigo sobre o assunto nos seguintes endereços eletrônicos: http://guiadobebe.uol.com.br/ parto-em-casa-e-seguro/
“Partos realizados por doulas, por exemplo, são muito românticos, mas nada poéticos… Elas cobram pequenas fortunas para realizarem partos na casa das pacientes. Os valores podem variar de R$5 mil a R$10mil. A doula acompanha todo o trabalho de parto, que é feito de maneira artesanal, deixando a natureza agir e sem qualquer intervenção cirúrgica. Em caso de qualquer problema todos tem que correr para o hospital. Sem esquecer que doulas não possuem formação médica. São técnicas que não saberão o que fazer num caso de complicação no parto. Há partos normais feitos por doulas que duram dias.”
Há nestas afirmações um profundo desconhecimento do trabalho das doulas e uma boa parte de folclore. Vamos à realidade:
- Algumas doulas, como qualquer outro prestador de serviço, cobram pelo seu trabalho e disponibilidade, mas realmente no Brasil e especialmente em Belém, o valor varia bastante mas não chega próximo aos valores citados pelo entrevistado! Ser atendida por uma doula, atualmente, gira em torno de R$800 a R$1.500 reais, um serviço que não é apenas pelo parto. Inclui um acompanhamento prévio - para esclarecimento de dúvidas, troca de informações e elaboração do plano de parto -, o parto em si - pelo tempo que durar e no lugar que a mulher escolher (em casa ou no hospital) - e apoio após o parto para cuidados com bebê e ajuda com a amamentação.
- Certamente a doula não realiza cirurgias nem possui formação médica. Ela é uma ajudante leiga, então ela acompanha a parturiente durante todo o trabalho de parto, parto e pós parto imediato no sentido de estar junto e oferecer alívio não farmacológico através de massagens, uso de bolsas de água quente, ajuda para se locomover além do apoio emocional considerado por muitas mulheres o fator fundamental para a contratação deste serviço.
- Quando a família opta pelo parto domiciliar, ela precisa contratar um responsável técnico para acompanhamento do parto e avaliação constante da saúde de mãe e bebê. Este técnico pode ser a(o) médica (o) obstetra, a(o) médica (o) de família, o(a) enfermeira(o) obstetra ou obstetriz. Não existe parto apenas com doula. Nos cursos de formação realizados no Brasil e os que acontecem na cidade de Belém este é um assunto extremamente reforçado quando se fala sobre a ética da doula, que ainda não é uma profissão, mas já é uma ocupação reconhecida pelo Ministério do Trabalho.
- A decisão pela condução técnica do parto é realizada por algum dos profissionais citados anteriormente no intuito de garantir a segurança do binômio mãe e bebê e considerando as opções de transferência para realização de intervenções quando estas são necessárias. Definitivamente as doulas não se envolvem nestas decisões, mas estão lá ao lado da mulher, pelo tempo que for necessário, dando apoio contínuo.
“Agora, você fazer um parto dentro da água e cortar o cordão dentro desse meio promove o risco do bebê morrer afogado.”
Sim. Certamente promove este risco. Por isso, a técnica de parto na água nunca incluiu esta prática. O bebê após nascer é colocado no colo da mãe, que não esta submerso, e independente do meio onde o parto acontece, se promove o corte oportuno do cordão, ou seja, aguarda-se alguns minutos para que o cordão pare de pulsar e o bebê possa realizar a transição da respiração placentária para pulmonar. Desta forma, não existe absolutamente nenhum risco de afogamento, devido o corte do cordão NUNCA acontecer com o bebê submerso.
Creio que tenhamos elucidado, com base em fontes nacionais e internacionais, as principais questões divulgadas erroneamente neste veículo. Gostaríamos de poder contar com um espaço similar no jornal para contribuirmos com o debate saudável acerca do tema e tendo em vista o que deve ser o maior compromisso do Diário do Pará: informar corretamente os seus leitores.
Assinam esta carta:
iSHTAR - Espaço para Gestantes
Parto do Princípio - Mulheres em Rede pela maternidade Ativa